outubro 20, 2025

Quando me dei conta, descobri ser filha do grande mago - Capítulo Único

Capítulo 00

A Bruxa dos Olhos do Arco-Íris

As vaias e o calor sufocante da multidão reunida na praça me alcançavam em ondas densas. Era uma pressão muito mais intensa e muito mais real do que o próprio calor do verão.

Fui arrastada escada acima até o cadafalso e, descalça, forçada a ficar sobre a plataforma coberta de pedrinhas afiadas.

Era a praça principal da capital do Reino de Grandia Licoris. Diante da imensidão da multidão, senti a consciência vacilar.

Alguns dos que estavam ali me olhavam com pena. Outros, com prazer cruel. Mas, dentro de mim, tudo era vazio. Afinal, eu iria morrer de qualquer forma.

— Fiona. — A voz soou ao meu lado, fria e distante. — Há algo que queira dizer antes do fim?

Quem perguntou foi o meu antigo noivo o príncipe-herdeiro Reinhardt.

Tentei mover os lábios ressecados e rachados, mas percebi que seria inútil. Ele não ouviria nada que viesse de mim.

Naquele baile de aniversário do príncipe anterior, Reinhardt rompeu o noivado diante de todos. Ao seu lado estava Olivia Büsser, filha de um visconde, que me lançava um olhar de desdém.

Naquela noite, eu deveria ter sido escoltada pelo próprio príncipe. Mas ele jamais apareceu. Quando decidi ir sozinha ao salão, encontrei-o lá sorrindo, de braços dados com Olivia.

E então, diante da corte reunida, ele anunciou as acusações absurdas que justificariam o rompimento. Nenhuma delas era verdade. Mesmo assim, todos acreditaram.

“Por isso, decido romper meu noivado com Fiona e assumir um compromisso com a bondosa Olivia!”, declarou.

O mundo escureceu diante dos meus olhos.

Por quê?
Por que eu?

Não consegui acompanhar o absurdo da situação. A dor, a raiva e a traição me esmagaram, e meus joelhos cederam.

O ar me faltou.
Comecei a tossir, agarrando-me ao chão de mármore.

Minha sombra se expandiu. Uma fumaça negra, densa e viva, começou a se erguer do meu corpo, devorando tudo ao redor.

“Magia em colapso! Fujam!” — alguém gritou, e o salão mergulhou no caos.

As pessoas se empurravam para alcançar as portas, amontoando-se como formigas em pânico.

“O mago dos Olhos do Arco-Íris está em fúria!”

Assim eram chamados os poucos magos que possuíam íris de sete cores um sinal de poder descomunal.

A minha escuridão engoliu o salão, e a explosão que se seguiu devastou metade da capital.

Recordar isso agora me traz apenas um riso amargo.

Sim, eu poderia culpá-lo. Mas, no fim, fui eu quem perdeu o controle. Fui eu quem matou.

Entre o público, reconheço rostos familiares meus pais adotivos, que me abandonaram à própria sorte. Observam-me com desprezo.

Sou empurrada de bruços contra a madeira fria. Sinto a presença da lâmina suspensa sobre mim. Nem mesmo a posição desconfortável me incomoda mais.

Os gritos da multidão se confundem num coro ensurdecedor: “Matem! Matem! Matem!”

Fecho os olhos com suavidade.

…Ah. Eu só queria… ver minha verdadeira família, pelo menos uma vez, antes de morrer.

No instante em que esse desejo tomou forma, o som de um vidro se estilhaçando ecoou ao meu redor.

◇◆◇

Abri os olhos num sobressalto. Pisquei várias vezes, sem entender onde estava.

Olhei em volta era o meu quarto.

Sentei-me de repente.
— Estou viva!?

Segurei a gola da camisola, e percebi que minhas mãos eram pequenas… demais. E meu peito já modesto antes agora era praticamente plano. Soltei um grito.

A criada, Magra, entrou às pressas.
— Senhorita! O que aconteceu!?

— Magra… meu peito…

Ao ouvir minha lamentação, ela suspirou, entre divertida e confusa.
— O que está dizendo? Teve um sonho esquisito? A senhorita acabou de completar seis anos. Não existe menina de seis anos com seios de dama!

— Hã… seis anos…?

Peguei o espelho sobre a mesa e encarei o reflexo.

Uma garotinha de rara beleza me observava de volta. Cabelos loiros até as costas, olhos multicoloridos olhos de arco-íris. Pele alva, feições delicadas.

— Eu… encolhi!?

Toquei as bochechas macias, atônita.
Era eu dez anos mais jovem.

— O que… o que está acontecendo?

Tentei me convencer de que tudo não passava de um sonho, mas era real demais. Minhas memórias todas as de dez anos à frente estavam intactas.

Eu tinha voltado no tempo.

Não sabia como. Nunca ouvira falar de uma magia capaz de tal coisa.

Mas uma coisa era certa: daqui a dez anos, seria repudiada pelo príncipe e executada como criminosa.

E eu jamais aceitaria esse destino.

— …O que devo fazer?

Pensei em todas as possibilidades. O pior de tudo fora perder o controle da magia. Eu havia estudado para ser uma maga, mas o treinamento de contenção fora insuficiente.

— Também não quero mais ser noiva do príncipe.

Na época, meu noivado fora político, mas, mesmo assim, eu o admirava. Hoje, essa admiração não passava de cinzas.

Preferia enfrentar o inferno a ter de vê-lo novamente.

Mas meus pais adotivos — ambiciosos como eram certamente tentariam me empurrar de volta para o noivado, para garantir laços com a família real.

Então me veio um pensamento.

— Talvez… eu devesse procurar meu verdadeiro pai.

Pouco antes da execução, minha madrasta em meio a insultos revelou a verdade: eu não era filha de sangue dos Browns. Meu verdadeiro pai era o Grande Sábio, Agart Ritter.

Diziam que ele vivia recluso na Floresta Maldita, um homem cruel e excêntrico. Ainda assim, minha mãe Jane Boran, filha de um estalajadeiro apaixonou-se por ele numa única noite. Dessa união, nasci eu.

Mamãe morreu quando eu tinha três anos, vítima de uma doença. Uma antiga conhecida minha atual madrasta me acolheu, mas não por bondade. Ela mantinha um caso com o conde Brown e, ao ser rejeitada, matou a esposa legítima dele, fingindo que eu era sua filha com o conde.

Por causa dos meus olhos de arco-íris, foi aceita como nova condessa.

Cresci como filha do conde, mas sempre fui tratada com frieza. Ele, talvez, soubesse a verdade.

No fim, eu não passava de uma peça em um jogo político.

Cerrei os punhos.
Naquela noite, eu fugiria.


◇◆◇

A noite era densa e aterrorizante.

Preparei uma mochila com roupas, água e comida para alguns dias e um pouco de dinheiro. Esperei sob as cobertas até que a lua alcançasse o zênite.

Fiquei diante da janela, olhei o quarto iluminado pelo luar e murmurei:
— Me desculpem… e adeus.

Deixava para trás minhas bonecas, meus poucos afetos e os poucos criados gentis.

Abri a janela, murmurei o feitiço de voo e saltei.

Aterrissei suavemente, verifiquei o entorno ninguém me vira.

Apliquei um feitiço de leveza nos pés e avancei.

Corri pelas ruas de pedra, saltei o muro do condado e, logo, deixei a capital para trás.

Graças às memórias do futuro, eu sabia como escapar. Nenhuma criança de seis anos dominaria tal magia mas eu, sim.

— Para a Floresta Maldita…

Horas depois, o bosque surgiu à minha frente vasto e sombrio. Diziam que quem entrava ali jamais voltava. Engoli em seco e adentrei.

Os sons da noite folhas secas sendo pisadas, o murmúrio distante de um riacho me fizeram tremer.

— Papai…

Agart Ritter. Que tipo de homem seria ele?

Um herói da guerra passada, capaz de destruir exércitos sozinho. Um eremita. Um monstro que, segundo boatos, comia carne de criatura crua.

Afastei os pensamentos sombrios e continuei.

— Onde está você, Agart Ritter…?

Foi então que o ar diante de mim ondulou.

— Uau…

Um portal grande como um espelho se abriu, revelando outra paisagem: uma casinha de tijolos, de dois andares, iluminada por uma lamparina.

Um convite?

Pisei adiante, e o portal se fechou atrás de mim.

Atravessei o jardim até a porta e toquei a campainha.

Silêncio. Toquei de novo.

Um estrondo ecoou lá dentro, como se algo tivesse desabado.

A porta se abriu e dois insetos negros, com longas antenas, correram pelos meus pés.

— Hiiiii!

Dei um pulo, apavorada.

— …Por que está dançando sozinha? — perguntou uma voz masculina.

Ergui o olhar.

Um homem de cabelos dourados até os ombros e olhos de arco-íris me observava. Belo, embora com olheiras profundas e barba por fazer. Camisa amarrotada, calças surradas.

Era ele.

Inclinei-me, segurando a saia.
— Muito prazer. Sou Fiona Brown, filha adotiva do conde Brown. Vim encontrar meu verdadeiro pai.

Os olhos dele se arregalaram. Após um breve silêncio, passou a mão no queixo e suspirou.

— …Entre.

A casa era um caos. Pilhas de lixo amontoavam-se pelos corredores, deixando espaço apenas para uma pessoa passar.

Senti o mundo girar.
Meu pai… era um acumulador.

O medo que eu tinha das feras da floresta era nada diante da sujeira daquela casa.

Fui levada até uma sala que servia de cozinha e sala de estar. Apesar da bagunça, o espaço era amplo.

Ele afastou papéis e instrumentos mágicos de uma mesa improvisada e me convidou a sentar. Murmurou algo, e o copo sujo em sua mão se purificou instantaneamente.

Claro — feitiço de limpeza.

Entendi então por que as roupas dele pareciam limpas, mesmo sem traço de organização.

— Água — disse ele, girando uma alavanca sobre a pia.

Da torneira saiu um fluxo cristalino.

— I-isso… como é possível!?

Ele respondeu com naturalidade:
— Liguei uma fonte subterrânea a um círculo de teleporte. As runas gravadas nos tubos purificam o líquido.

— Incrível…

Ele era, de fato, o Grande Sábio.

Mas nem mesmo magia alguma podia livrá-lo da desordem.

Sentou-se diante de mim.
— Então… você disse ser minha filha.

Endireitei-me na cadeira.
— Sim. O nome Jane Boran lhe é familiar?

Contei tudo inclusive o que aconteceria dez anos depois.

Quando terminei, ele cobriu os olhos com a mão e soltou um suspiro pesado.
— …Então Jane morreu.

Havia carinho e arrependimento em sua voz.

Olhei-o em silêncio, tentando enxergar nela um reflexo da minha mãe.

O silêncio se prolongou.

— O senhor acredita em mim? — perguntei, com a voz trêmula.

Ele assentiu.
— Seu corpo carrega vestígios da minha magia. O feitiço que a trouxe de volta foi um dom que dei a Jane, para que pudesse recomeçar se algo terrível acontecesse. Ela não o usou por si… deixou-o para você.

As lágrimas brotaram sem aviso.

— N-não chore! — ele se atrapalhou. — Não sei lidar com crianças chorando!

Ajoelhou-se diante de mim e tentou secar meu rosto com a manga, sem delicadeza alguma.

— Não há dúvida de que é minha filha. Sua aura mágica é igual à minha. E os olhos… os olhos do arco-íris são a prova disso.

Assenti, fungando.

— Então… o que deseja de mim? — perguntou, cauteloso.

“Quero morar com você”, pensei. Mas não tive coragem de dizer.

E se ele me rejeitasse?

Pensei em meus pais adotivos. Nenhum adulto mantém por perto algo que não lhe é útil.

Olhei ao redor e tive uma ideia.

— Não sei controlar minha magia. Foi por isso que destruí tudo, no futuro. Quero aprender. Por favor… deixe-me ser sua aprendiz.

— Minha aprendiz?

Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

Curvei-me em reverência.
— Sim! Posso cozinhar, limpar… o que for preciso!

Após um momento de silêncio, ele bagunçou o próprio cabelo e suspirou.
— Eu não costumo aceitar discípulos… mas tudo bem. Pode ficar.

E assim, começou nossa vida juntos.

~Fim~ 

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